O Orfeu rebelde

Miguel Torga por Bottelho
Miguel Torga por Bottelho

Quando em 1962 escrevi sobre ele um texto que posteriormente vim a publicar, não descansei enquanto não lho mostrei na sua casa de S. Martinho de Anta. Estava acompanhado da esposa e eu lia, prescrutando-lhe os gestos, que sempre lhe rebentavam de dentro, como renovo de mato bravio. Sabia já que era um poeta indomável e, dado que eu lhe estudava as relações com a terra e a divindade, revelando-lhe quanto a esta uma atitude de suspeita, radicalizada frequentemente num desafio feito de afronta e negação, tive de o enfrentar, de lhe ver os olhos bem acesos como gumes e um gesto cortante, ainda que florido.

Eu era então ainda um jovem sacerdote, algo inábil mas a perseguir sentidos. Parece-me que ele o sabia e, interrompendo-me a leitura, fez-me olhar para uma macieira do quintal: Olhe bem disse-me. Quando eu escrevo um poema sobre esta macieira, o meu estado de graça é tão puro como o de você quando está a celebrar missa.

Como irei esquecer este momento alto dos meus encontros com o “orfeu rebelde” da nossa poesia, eu que cada vez mais me convenço de que a poesia é milagre e salvação? A poesia de que cada vez mais os homens desdenham e por isso cada vez mais se incapacitam para colher o sentido das coisas, o que há de torga e de esteva, de natureza, de entrada no infinito.

Não posso esquecer neste depoimento o seu amigo Fernão Magalhães Gonçalves e o que ele diz no livro Ser Torga (1992) que felizmente prefaciei: “uma força natural, indomada, selvagem”, a força daqueles “homens que se não deixam abater e dos que apenas agem como vencidos”. Perfeita caracterização de que emerge um espírito forte e atormentado, convivente com o que nas coisas é rebelde e humano, verdadeiro.

Como homenagem, deixo aqui um poema longínquo (1963) que Miguel Torga leu, mas sobre o qual nunca me transmitiu opinião directa:

Pedra talhada em homem.
Por isso os gestos são cortantes
e neles há instantes
de lava que os consomem.

Maravilha estarrecida
no abismo que a concebeu.
Mas “há um sonho de céu
em cada ramo” que decida.

in Jornal de Notícias (19-01-1995)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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