Onde se fala de mortos vivos

Quando a noite invade brejos e fundões, encruzilhadas, descampados, casarões e especialmente os cemitérios, a imaginação humana tende a ser também invadida pelo sentido do oculto e pela insegurança, o que não raro está na origem de bizarras ilusões e alucinações em que falsamente se percepcionam coisas do arco da velha. “Era a mão dele, fria como o gelo, que me apertava a garganta. Até acordei sobressaltada, banhada em suor”. “Olha, foi ali: a feiticeira saiu-me da esquina, pôs-se a dançaricar e a rir-se de mim a descarada”. “O lobisomem vinha com a aguilhada, em cima de um cavalo que corria a toda a brida; foi por Deus que me desviei, se não furava-me os olhos”. “Eu vi-o, eu vi-o, juro-te: dois olhos a arder e as manápulas a virem para mim; era o ti Belisário a sair da campa: lá tinha coisa que o chamasse, porrinha!, não sei como escapei”, etc.

Ora, naquela noite, quando regressava de casa de um amigo onde fora tratar de uns assuntos, o Jaquim, que não é homem para pantominices, não senhor, o que diz é uma escritura, passava junto do muro do cemitério e deu-lhe vontade de verter águas, o que se pôs a fazer com toda a calma e candura. Com’assim, os defuntos não vão chatear-me, pensou. A lua metera-se entre as nuvenzecas, a armar em menina envergonhada, e o cigarro pingava-lhe da beiça a condizer. Foi então que ouviu: estes dois são para ti e aqueles três são para mim. Fitou a orelha – queres tu ver que os mortos andam a dividir o povo entre eles. Não me digas, ó Jaquim, que vamos ter velórios, sobre velórios, dentro de dias! – pôs-se a desconfiar. E, não fosse ele ter ouvido mal ou mesmo não ter ouvido, que isto de ouvir bem tem os seus quindins, marralhou ali mesmo, com a braguilha desapertada e o coiso ainda cá fora, e guindou os olhos para a testa da vedação.

– Então, sim, ouvi nitidamente, eu seja ceguinho. Ouvi uma voz amodorrada, como se já estivesse em fim de safra, ouvi-a dizer: e aquele que está ali sozinho é pra mim.

Na taberna, os companheiros tinham os copázios abandonados. Um deles tinha-o mesmo suspenso entre o bico da atenção e o bico da boca, sorridente.

– Acredito lá nessa fantochada! – disse arrebitando gaifonas.

– Ah, sim? Não acreditas? Então, já que és tão basófias, vai lá escutar. Mas vai sem companhia, ala!

E foi. Que o Júlio Nocas não se deixa partir aos bocadinhos com duas tretas como o Jaquim, o cagarola, que se pôs nas andadeiras quando pensou que ele também ia prò saco. Cá eu… Ao chegar perto do cipreste ainda sentiu uma ligeira tremura, mas como sabia os outros a espreitarem-no de longe: tate, ruça de má pelo. E avançou. Para o mesmo sítio, debaixo de um cedro, onde o panasca tinha feito a regada. E pôs-se à coca.

– E aquele que ali está, bom, aquele é para ti – ouviu com toda a nitidez, pois tinha os ouvidos bem escarafunchados.

Tremeu, sim senhor, que estas coisas fazem cócegas a sério. Mas não arredou pé. Encostou-se ao barrigame do cedro e começou a trepar de mansinho, tem-te-não-caias. Os outros topavam-no de longe. E o Jaquim com a viseira a ficar remoída como se fosse a cabeça de um cabrito fora do alforge, a ver o mundo: lá subir não subi.

Tremeu, sim senhor, que estas coisas fazem cócegas a sério. Mas não arredou pé. Encostou-se ao barrigame do cedro e começou a trepar de mansinho, tem-te-não-caias. Os outros topavam-no de longe.

O Júlio sentiu qualquer rumor no cemitério e quedou-se, alapardado, fincando um pé em galho seco que estalou ligeiramente sob o peso. Rumor contra rumor. Entesou-se de súbito, trepou mais um pouco e sobrepôs o queixo no rebordo cimeiro da parede. Pareceu-lhe lobrigar dois vultos sentados na mesa de pedra destinada aos caixões para a reza final. Reparou melhor. Entre os mármores que a lua fosca empalidecia. Quem quer que fosse mexia-se e fazia gestos. Tomado já de curiosidade, arrastou-se muito em silêncio sobre o muro, saltou sobre uma campa e foi-se cosendo com os túmulos.

Oh Jaquim, Jaquim! Com que então eram as almas do outro mundo! – exclamou o Júlio Nocas, já na taberna, enquanto levava à boca uma garfada picantinha de bacalhau.

Comemoravam o acontecido os anteriores convivas e mais dois rapazotes que tinham sido apanhados com a boca na botija. Estes, de facto, estavam no cemitério a repartir uma sacola de limões, surripiados ali perto, tendo escolhido matreiramente o sítio para não darem nas vistas. Este para mim, aqueles dois para ti, etc. O Jaquim, com a tola atarantada, fugira a sete pés, esmiolado de todo. Eles, pelo visto, além de ladinos, eram mais afoutos.

– Desculpai lá os lambefes – disse o Júlio aos putos, avisando-os de que não queria ratonices no seu limoeiro, que não admitia, oh pá!, admite-se?, picardias dessas.

Isto aconteceu para os lados de Bragança, conforme me contou o poeta Alberto Miranda, que ali viveu uns tempos. Penso que os estimados leitores conhecem estorinhas destas, com ratos, fogos-fátuos, ranger de móveis, noitibós e trastes semelhantes: escrevam-nas para desopilar os fígados, sim, sim.

in Terra Quente (15-06-1998)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

Saber mais…

Escrever um Comentário