Uma criança a brincar

Criança a brincar com areia

Falei há dias com uma criança, sem que entre nós houvesse a mínima troca de palavras. Gostas de brincar com a areia, porque as mãos enchem-se e esvaziam-se num instante, não é assim? Pois, responderam-me os olhos que andavam de dedo em dedo como andorinhas verdes.

O monte, grande monte de areia, estava à ilharga de um prédio alto, também ele um monte de areia que, visto dali, se perdia nas nuvens, areia de água, areia também. Os limoeiros ficarão na memória por algum tempo, o suficiente para sentirmos esse frémito de vida no esquecimento. Os limoeiros viam-se ao dobrar a esquina e nas horas da flor aproximavam-se, cortesia que eu e tu ainda agradecemos, pois não temos a mínima dúvida de que os perfumes bons que vamos respirando, embora cada vez menos, passam no mesmo caminho que outro perfume abriu.

Ela brincava com as mãos e concentrava-se nesses ramos. Talvez não soubesse que a areia vem do mar, dum rio e muito menos saberia do seu parentesco com a montanha onde o tempo de coração forte se foi entranhando, a morder aqui, a corroer ali, ele que apenas sobrevive à custa do que de certa maneira deixa de viver. Na areia um cavalo de crinas azuis como o céu ao anoitecer vai pastando serenamente: ervas que só ele vê, ervas que as mãos tocam muito ao de leve, sem saberem que as tocam. O cavalo, se a criança reparasse bem, estava mesmo debaixo dos seus ramos e podia, podia acariciar-lhe a pele de seda. Talvez acariciasse.

Lembro-me agora do pequenino que entrou facilmente na minha atenção, fenda tão estreita. Umas calcitas roçadas nos joelhos, o arco da atenção a abrir-se e a fechar-se constantemente, o cabelo curto para que os olhos circulassem à vontade, não me lembro da cor dos olhos, talvez mudassem de cor a cada gesto que fazia, as sapatilhas, sim, essas não me saem também do pensamento, estavam a ficar velhas e uma tinha os cordões completamente desapertados, soltos como a fralda da camisa, no lado direito, certamente a quererem dizer que, quando o jogo corre da parte de dentro do corpo para as coisas e vice-versa, aquilo que se veste não tem lá muita importância.

Ah!, exclamei em dado momento, esta criança faz-me lembrar aquele menino que o grande pecador que foi Santo Agostinho viu num extenso areal, ao pé de um extenso mar e que ia à água com uma concha, ia e vinha, despejando-a numa cova aberta na areia. Que andas tu para aqui a fazer, ó fedelho? interrogou o pecador. E o fedelho, sem lhe passar cartão com os olhos, todo metido no seu jogo: vou mudar o mar de sítio e pô-lo, olarila, naquele buraco. Aí, o pecador, que não era idiota, ficou idiota de todo: se o mar é tão grande, como podes tu metê-lo numa coisa tão pequena?

Quando uma criança brinca, antecipa o tempo presente, suspende-o como lâmpada e tu experimentaste o deleite nesse brilho. Regressaste a um paraíso futuro que já perdeste, que todos perdemos neste pecado de ser homem, e não ser homem, sendo ao mesmo tempo a criança que se foi.

Diz a tradição, registada aliás em interessante quadro por Boticelli, que o tal pecador que nem por isso deixou de ser santo, andava por ali a matutar no que seria aquilo a que se chamava Deus. Deus, infinito, ora essa! Como poderá ser? Nã, não entendo. E foi então que o pegulho, que pelo visto era o Menino Jesus, lhe pespegou com esta, bem no meio dos olhos: é mais fácil eu meter o mar nesta cova do que tu meteres Deus no Pensamento.

Ora toma, que vais para Roma. Estou eu bem longe de ser um Santo Agostinho, homem e filósofo que tanto me impressionou desde a juventude. Mas ninguém me tira da ideia que foi ele mesmo que olhou através de mim, ou eu através dele, o gaiato que brincava com a areia. Brincar é dar a volta ao mundo. Pouco a pouco, aquela areia foi-lhe entrando nas mãos onde cabia como um ovo. E coube também aquele prédio monstruoso e outros como ele que devoram o espaço das árvores e do sol, impedindo as crianças de brincar. Também a montanha, reduzindo-se a um grão transparente de areia, lhe veio a cair na concha das mãos. O mundo inteiro. E eu com ele.

Dois ou três minutos que a ida para o trabalho me consentiu. Quando uma criança brinca, antecipa o tempo presente, suspende-o como lâmpada e tu experimentaste o deleite nesse brilho. Regressaste a um paraíso futuro que já perdeste, que todos perdemos neste pecado de ser homem, e não ser homem, sendo ao mesmo tempo a criança que se foi. Ofereço-te, menino, a minha sabedoria inútil pela sábia inutilidade do teu jogo. A sabedoria dos adultos também é areia e ela cabe nas tuas mãos, sem ocupar grande espaço.

in Terra Quente (1-2-1997)

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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