A vinha e o vinho

Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam
Edmund J Sullivan, ilustração para o Rubáiyát de Omar Khayyam

Ó lavradores do Douro
já não comeides vitela.
Deu a doença nas vinhas
chamada filoxera.1

Num dos feriados deste Junho abafadiço fui até à aldeia e juntei-me a cavaquear na rua com três rapazes do meu tempo, pois gosto sempre de recordar o que lá vai. Daí até a conversa derivar para o drama da vinha e do vinho foi um ai compassado. E daí até estarmos na adegazinha de um deles foi uma revoada de andorinhas. Depois de virarmos o primeiro copo a molhar uma salada de bacalhau, o Zé Nocas deu um pulo a casa, trouxe uma gaita de beiços e pôs-se a tocar a caninha verde. E foi então que participei numa acção cultural do camandro. O Tó Carlos ergueu o seu copinho de tintol e desatou-se:

Ó lavradores do Douro,
quem vos viu e quem vos vê!
Estais a dar um estouro
e vós mal sabeis por quê.

Mais uma garfada de bacalhau regadinha a preceito.

Ó lavradores do Douro,
que mal vos pagam as uvas!
Estais a dar um estouro
por causa dos sanguessugas.

Toda a gente arregalou os olhos que se despegaram, caíram dentro dos copos e, antes de voltarem as órbitas, se juntaram: tlim, tlim. E o Tó, cada vez mais diabrete, a apontar alvos:

Ó lavradores do Douro,
que mal vos pagam o vinho!
Estais a dar um estouro:
é o neoliberalismo.

Já estava gente à porta. Vai um copo? Ora pois. Favores de gente honrada… E o Tó a botar a última canta:

Ó lavradores do Douro
ora prestai atenção:
para não dardes o estouro
o que é preciso é união.

Palmas, está visto. Mas também comentários vermelhinhos. Foi na noite desse dia que eu plasmei esta cronicazinha. Assim pequena. Assim nua. Para se contemplar, ou antes, para se ler melhor. E digam-me os senhores leitores se uma coisa destas está ou não a calhar com a paisagem cultural duriense, evolutiva e viva.

in Notícias do Douro (20-6-2003)

  1. quadra popular duriense nas últimas décadas do séc. XIX
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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