Sobre a expressão “Entre quem é”

Em Trás-os-Montes e Alto Douro cultivava-se a hospitalidade que consistia em as pessoas receberem sem reservas na sua morada (ethos em grego) o conterrâneo ou o passante que batessem à porta. Esta, durante o dia e até à hora de deitar, estava sempre encostada ao batente, sem recurso à língua da fechadura ou, quando muito, apenas com cravelho ou trinco manejáveis por fora.

Explicar tanta confiança não é tão fácil como parece. Virtudes da terra-mãe que é de todos e todos partilham ou devem partilhar sem animosidades. O instinto do sagrado a revelar-se na comunhão necessária com os outros, o outro de si? Ou somente o hábito da vida simples em que o dar e o receber fazem parte dos olhos nos olhos da vida comunitária? Estas questões conduzem-nos amavelmente ao mundo do paraíso perdido ou das grandes utopias. A ser assim, a comunidade não é só dos que vivem numa localidade, perto uns dos outros, mas alarga-se (alargava-se mais do que se alarga) ao nosso semelhante que em princípio é portador da mesma fiabilidade. As más intenções e velhacarias são excepção que confirma a regra.

A porta de entrada tanto podia ficar ao rés-do-chão como no primeiro piso, ao cimo das escadas. Quem batia nesse tempo era porque ia por bem, precisando de ser atendido e por isso, se estava alguém dentro, ouvia logo: entre quem é. Camilo, o escritor, conta que beneficiou algumas vezes dessa bondade, até em casas bem pobres, e o próprio Zé do Telhado, o salteador, ou “repartidor público” como ele se considerava, foi recebido prontamente em terras de Penaguião, numa noite tempestuosa.

Hoje, em tempos socialmente irrequietos (e frustrantes para os saudosistas), o costume vai rareando, ainda que haja zonas onde neste caso a pureza de espírito, quase sempre aliada à pobreza ou ao espírito da pobreza, exclui medos e temores. A porta da rua sempre encostada (cerrada ou çarrada, segundo também se diz e escreve) permite dizer, assim floridamente, a quem bate: entre quem é.

Crónica publicada no site NetBila em 2005

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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1 replies on “Sobre a expressão “Entre quem é”

  • António Pena Gil

    É, por isso, que adoro e maravilha-me ser transmontano. Perfeito. Fabuloso e Admirável.
    Gentes simples, mas fantásticas e confiantes em si próprias e na Arte de confiar.
    Adorei. Notável.
    Com respeito. Sempre a considerá-los imenso.

    António Pena Gil

    Bem-Hajam, pela que são e significam. Imenso!

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