A Cristina teve de optar entre dois pretendentes e optou. O Zeca não tinha nada com isso, pois não, mas jurou vingar-se, escolhendo um momento azado do Entrudo, o baile de caretos que o Vespertílio organizava anualmente no salão de festas. O baile começava à meia noite e prolongava-se até às tantas da matina, sendo apenas interrompido às três da manhã para o leitão com batatinhas louras e grelos, oferta da casa, com champanhe à lagúrdia. Diga-se que o espumante era excepcionalmente oferecido pela adega da vila próxima, motivos de propaganda, claro. Só eram admitidos quarenta pares, com máscaras a gosto próprio, menos as de morcego, estas reservadas para os donos da casa, Cristina e o marido. Todos os bailantes tinham de envergar ainda um balandrau de capuz que nas costas exibia a legenda em redondo: Café-Restaurante Vespertílio – balandrau cedido pela casa apenas para o efeito. Foliões não faltavam, até faziam bicha à entrada do restaurante para a refeição das vinte horas servida a um preço acessível.

O Zeca lá estava, aparentando a maior naturalidade possível. Quem servia à mesa eram jovens da aldeia, eles de lacinho ao pescoço e elas de lacinho no cabelo. Ouvia-se música. Tomou-se café. Palrava-se. Fumava-se. Saía-se à rua para reabastecer os bofes. E chegou um ilusionista o qual actuou, com intervalos avinhadinhos, até cerca da meia noite. Quando toda a gente subia para o salão, guiada por Cristina, o outro reparou que o Vespertílio, raio de nome, continuava atrás do balcão a fazer contas. Mandou vir um pirolito e dois copos. Prontamente atendido, deitou nos dois quantidade igual, esperou que ele voltasse costas e num deles vazou uma carteirinha de pó. Começou por beber um golinho magicado – anda tu também beber, à saúde da prosperidade. O Cristino ainda hesitou, mas para não avivar coisas passadas fez-lhe a vontade. E o outro, logo que o viu pingar de sono, pifou-lhe a máscara de morcego que estava pendurada, deitou a sua ao fogão de lenha e num ápice voou para o salão.

Devidamente enfarpelado, abeirou-se de Cristina com uma vénia que, ao ver o marido, prontamente acedeu ao convite. Logo nos primeiros passos deu conta de que ele a cingia pela cintura e ficou desconfiada, pois o marido sempre dançava com a mão esquerda subida. Desprendeu-se um pouco e disse-lhe ao ouvido, baixinho, que estava a ficar muito excitada. Pelo cheiro a carqueja, viu imediatamente de quem se tratava. Fosse ao quarto de banho, era urgente, tirasse a roupa toda menos a careta, oh a careta nem pensar – no dia de hoje? – que ela não tardaria. Ele foi logo; e ela também, mas, passado um minuto, ia abrir a porta – ocupado, disse ele de dentro, sou eu, ciciou Cristina com uma impostorice de nuvem franjada pelo sol, ele abriu, voltando-lhe as costas instintivamente, o que veio a matar: enquanto o diabo esfrega um olho, rapinou-lhe toda a roupa do cabide e, deixando a porta aberta, levou a chave e precipitou-se para o piso de baixo. O marido ressonava atrás do balcão, com a cabeça apoiada num mocho.

O aldrúbias foi descoberto por um careto que, apertadinho da bexiga, forçou a porta com violência – olá! Nu e exposto à gargalhada geral, o desinfeliz, cobrindo a pitorra com a careta de morcego, correu de escantilhão escada abaixo e pisgou-se para a rua, cambaleante, já sem consciência de si. Foi então que o morcego da mascareta reclamou os seus legítimos direitos e voou com ele para uma lâmpada da iluminação pública à volta da qual o marmanjo teve de girar, abocanhando falenas.

Moral da história – disse ao outro dia um inteligente lá do sítio, – décimo primeiro mandamento: não pifar a careta do vizinho. Já o aldrúbias tinha emigrado para um lugar desconhecido.

António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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