Junqueiro na berlinda

“Inquiriram, uma ocasião, de Junqueiro que paisagem portuguesa preferia. Respondeu:

– Prefiro o Buçaco e as praias do Sul. A floresta e o mar são as aproximações do infinito. A floresta é uma oração; o mar uma grande messe de ondas.

– E Barca de Alva, Sr. Junqueiro?

– Barca de Alva é demasiado trágico para mim. A paisagem é dura, escalvada, uma paisagem bíblica em que o Deus que ali fica bem é Jeová!

Meras frases talvez, porque o Douro e a sua região nunca deixaram de revestir para Junqueiro um encanto especial. Quando se sentia fatigado dos homens, refugiava-se nas cepas que ele plantara, um dia, nos socalcos da Batoca, quantas coisas de doce, de amoroso, elas nos contariam acerca do seu sonho!” 1

Guerra Junqueiro
Guerra Junqueiro

Ora aqui está um texto que me chamou a atenção relativamente ao que para nós, transmontanos e durienses o não, deve significar a nossa terra. A raiva em fuga, motivada por asperezas e intempéries, mas também o sonho que deixamos repartido por montes e vales, nas raízes de uma videira, no tronco gretado de uma oliveira, numa crista de montanha onde o sol nasce, onde o sol desaparece, contornando horas quantas vezes aflitivas e enigmáticas. Uma praia do Sul alivia-nos o espírito como uma viagem além-fronteiras; a terra que nos viu nascer e na qual, nos seus infinitos ramos, a nossa esperança fez o ninho, fecundo ou não, ah, essa terra palpitará sempre no fundo dos olhos, enraizando-se numa alma, por vezes dolorosa. Dolorosamente.

Viesse Junqueiro a Barca de Alva, a Freixo de Espada à Cinta, à Batoca, numa palavra, à sua região, e ficaria hoje revoltado com as ameaças de desertificação humana, com a perspectiva de ter de arrancar as videiras que amorosamente plantou e viu plantar. Tudo em nome de um mercantilismo com que o açúcar de beterraba dos países nórdicos nos quer deserdar. Até o Douro, a mais velha região demarcada do mundo, está sob fogo cruzado.

Aprender um pouco com o espírito indomável do nosso Junqueiro talvez seja oportuno nos dias azarentos que correm. Aprender também com a sua simplicidade.

E, já agora, uma historiazinha que me contaram e em que o célebre poeta está simpaticamente na berlinda. Entrara na estação do caminho de ferro em Barca de Alva, comprando um bilhete de primeira classe. Normal: ele até tinha uma vida económica desafogada e gostava de assentos fofinhos para, corpo descansado, poder alongar os olhos pelas soberbas encostas durienses. Ali pelo Pocinho, surge-lhe na carruagem um revisor que, mesmo antes de lhe pedir o bilhete, lhe impõe a mudança para uma carruagem de terceira.

– Ora essa! – exclamou o Junqueiro. O senhor pelo visto não gosta de mim.

– Vá, vá, homenzinho, levante-se. Toca a andar.

– Não me diga que também me quer prender. Tenha lá pena de mim – prosseguiu o autor de “Os Simples”, com um sorriso a boiar nas palavras, algo irónico.

Era de Inverno e viajava com uns socos abertos e capa escura de romeira como um camponês. Enroscava-se modestamente junto da janela do comboio, sítio preferido para a sua festa de olhares. Manteve-se sentado, sempre com um meio sorriso.

– Ou sai a bem ou sai a mal – ameça o revisor.

Até que Junqueiro, perfurando com olhos já sarcásticos o inquiridor, ele que não se dava com autoritarismos, mas ao mesmo tempo condoendo-se daquele homem a quem tinham ensinado a ser estúpido, meteu a mão no bolso e sacou o bilhete.

– Aí tem, meu senhor.

O revisor ficou embasbacado, pois por aquelas bandas eram poucas as pessoas que viajavam em primeira classe. De mais a mais, de socos e capote.

– Como é que o senhor se chama? – perguntou.

– Guerra Junqueiro.

O revisor arregalou os olhos e tirou o boné, em atitude justíssima de reverência.

– Queira desculpar, queira desculpar, senhor poeta! – exclamou, pegando-lhe
nas mãos para as beijar.

Junqueiro, então, levantou-se, esquivando-se ao melado beija-mão, e sacou da mala uma garrafa de vinho velho, que abriu, acabando os dois por beber à saúde da poesia, dos cavadores, das moleirinhas e outros santos do hagiológio junqueiriano.

  1. In Luís de Oliveira Guimarães, “Junqueiro na Berlinda”, Lisboa, 1952
António Cabral para Eito Fora por Pedro Colaço Rosário (2001)

António Cabral [1931-2007] foi um poeta, ficcionista, cronista, ensaísta, dramaturgo, etnógrafo e divulgador da cultura popular portuguesa.

Nascido em Castedo do Douro, em pleno coração duriense, a 30 de Abril de 1931, iniciou a actividade literária com o livro de poesia Sonhos do meu anjo, publicado em 1951. Ao longo de 56 anos de carreira dedicada à escrita, publicou mais de 50 livros em nome próprio, abraçando géneros tão diversos como a poesia, o teatro, a ficção e o ensaio, dedicando-se em paralelo ao estudo apurado e divulgação das tradições populares portuguesas. As suas raízes transmontano-durienses e a ligação à terra que o viu nascer, “o Paraíso do vinho e do suor“, são presença incontornável em toda a sua obra.

Colaborou em jornais e revistas de todo o país, co-fundou as publicações Setentrião, Tellus e Nordeste Cultural, participou em programas televisivos, radiofónicos e conferências, contribuiu com textos para várias antologias, colectâneas e manuais escolares, prefaciou livros. Alguns dos seus poemas foram cantados, no período pré 25 de Abril, por Francisco Fanhais, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais recentemente, interpretados pelos Xícara, Rui Spranger, Blandino e Rui David.

No campo da intervenção sociocultural dirigiu, a nível distrital, instituições como o F.A.O.J. (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis) e o I.N.A.T.E.L. (Instituto Nacional de Aproveitamento dos Tempos Livres), fundou e co-fundou o Centro Cultural Regional de Vila Real (C.C.R.V.R.) e A.N.A.S.C. (Associação Nacional dos Animadores Socioculturais), respectivamente. Como Presidente do C.C.R.V.R., promoveu cinco encontros de escritores e jornalistas de Trás-os-Montes e Alto Douro e impulsionou a realização de vários encontros de jogos populares em Portugal e no estrangeiro.

Diplomado em Teologia pelo Seminário de Santa Clara de Vila Real e Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, António Cabral exerceu actividade de docente nesta cidade desde 1961 até 2007, no ensino particular, secundário e Magistério Primário, com um breve interregno entre 1988 e 1991, anos em que se dedicou à investigação de jogos populares e ludoteoria como bolseiro do Ministério da Educação.

Foi agraciado com as medalhas de prata de mérito municipal pelas autarquias de Alijó (1985) e Vila Real (1990).

António Cabral faleceu em Vila Real, vítima de doença cardíaca, a 23 de Outubro de 2007. Tinha 76 anos de idade. Nesse mesmo ano de 2007 publicou o livro de poesia O rio que perdeu as margens e deixou no prelo A tentação de Santo Antão, prémio nacional de poesia Fernão Magalhães Gonçalves.

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